O poder da Graça
Em certa ocasião, Irmão André, fundador da missão Portas Abertas, disse que Deus sempre o coloca diante de situações que o desafiam a viver na prática aquilo que prega. Posso discordar de muitas das coisas que Caio Fábio diz, mas em uma coisa estamos de acordo: a igreja transformou a graça de Deus em mero conceito teológico, em vez de incentivar que ela seja vivida e experimentada de forma prática e plena.
Observação: As menções ao filme “O Poder da Graça”, no texto a seguir, serão feitas com cautela, para não dar spoiller.
No filme O Poder da Graça o protagonista é colocado diante de circunstâncias em que ele precisa escolher entre viver o que prega ou admitir que tudo não passa de teologia estéril, desprovida de qualquer senso prático, para não dizer hipocrisia pura e simples. Nesse filme, a graça é mostrada por um ângulo geralmente negligenciado pelas igrejas modernas, notadamente aquelas com generosos espaços na mídia: o cristão como agente da graça e não como beneficiário dela.
Amar é uma opção
É necessário ter em mente que, embora nem sempre seja fácil na prática, amar é muito mais que um sentimento. Trata-se de uma escolha consciente, um ato voluntário. Se não fosse assim não faria sentido Jesus nos ordenar que amemos os nossos inimigos.
Amar é um mandamento
Nesse sentido, amar não é uma opção, mas uma obrigação que nos foi imposta por Deus. Amar a Deus acima de tudo e ao próximo sem restrições, como a si mesmo. A oração ensinada por Jesus não deixa dúvidas quanto a isso. A graça dispensada por Deus a nosso favor, especialmente o perdão, precisa encontrar eco em nós. Sem uma atitude perdoadora de nossa parte, não há base para crer que o perdão de Deus esteja disponível para nós.
Perdoar a si mesmo
Uma das coisas ressaltadas no filme é que a amargura demonstrada pelo outro personagem, a motivação por trás dos seus atos e sua descrença em Deus, era decorrente do fato de que ele mesmo não conseguia se perdoar. Quando Jesus nos manda amar ao próximo da mesma forma como nos amamos, isso implica, primeiramente, em superamos nossas próprias neuras. Não podemos afirmar que amamos a Deus se, verdadeiramente, não amamos ao próximo. Igualmente, é impossível amar e perdoar os outros, se não somos capazes de lidar com as nossas próprias falhas.
Deus sempre esteve em busca das pessoas
À medida em que Deus foi dirigindo os acontecimentos retratados no filme, o pastor foi descobrindo que o seu campo de atuação mais importante não era o púlpito, mas as ruas. Não havia uma linha divisória entre sua vida profissional e seu pastorado.
Jesus também ia ao templo. Ensinava e fazia milagres no templo. Porém, seu ministério era desenvolvido principalmente fora dele, nas ruas, praias e eventos sociais. Onde quer que houvesse pessoas, pecadores, doentes da alma e do espírito (e, quase sempre, doentes do corpo também) ali estava Jesus, ministrando a cura. Desde o Éden, Deus sempre esteve em busca das pessoas. A vinda de Jesus à terra foi mais um desses episódios de Deus em busca do homem. Não é de admirar que Jesus não permanecesse parado, esperando as pessoas o procurarem. Ele ia em busca delas.
Não é isso que temos visto nas igrejas, em geral. Quando o império reconheceu a igreja e se sujeitou a ela, a igreja, como instituição, igualmente, se submeteu ao Estado e se deixou influenciar por seu modo de pensar. Instalada em templos suntuosos, dominadas por um clero sedento de poder e reconhecimento, a igreja, em todos os ramos do cristianismo, cada vez mais se assemelha aos impérios humanos e cada vez menos com aquela que foi fundada por Jesus.
Um ato de graça
A mensagem do pastor, no filme, era verdadeira mas estava esvaziando sua paróquia. Ela somente foi capaz de tocar os corações quando deixou de ser mera oratória e se transformou em atitude.
Estamos acostumados a buscar a graça de Deus, pedir por ela todos os dias e, quem sabe, agradecer por ela em cada oração. Entretanto, apenas reconhecer que cada manhã é um ato da graça de Deus não é suficiente. Na parábola do credor incompassivo, narrada em Mateus 18:23-35, Jesus mostra o quão importante é para Deus a reciprocidade da graça. A graça recebida de Deus precisa ser traduzida em graça dispensada aos nossos semelhantes.
Não foi fácil para o protagonista do filme reconhecer que o milagre, tão desejado, estava em suas mãos. Seria bem mais fácil colocar a igreja para orar, pedindo o milagre. Claro que Deus faz milagres! Mas, provavelmente, o maior milagre que Ele esteja querendo realizar é o de nos moldar à sua semelhança, a ponto de nos tornarmos agentes de sua graça. Quando o milagre pode ser realizado por nós, por nossas atitudes, Deus espera que o realizemos. Tiago diz que, se podemos alimentar o faminto mas nos limitamos a orar por ele, estamos na contramão da graça.
E algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e nào lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí? Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma (Tiago 2:16-17).
Os filhos de Deus, alcançados pela Sua graça, são comparados a ribeiros que fluem abundantemente, não a cisternas que retém as águas apenas para si. A parábola do credor incompassivo termina com uma severa advertência. Não há misericórdia para aqueles que não exercitam a misericórdia na mesma medida em que a receberam.
Tesouro em vasos de barro
A Bíblia diz que temos um tesouro em vaso de barro, referindo-se ao fato de que o Espírito Santo habita em nós. Essa é uma das mais importantes diferenças entre o cristianismo e as outras religiões. Em nenhuma outra, o seu deus promete morar no ser humano. Porém é exatamente isso que Jesus garante aos seus discípulos. “Eu e meu Pai viremos fazer morada em vocês”, promete Ele aos seus seguidores.
Reconhecer a nossa própria fragilidade, suscetibilidade às falhas e ao pecado, bem como a nossa completa dependência de Deus, leva o escritor bíblico a comparar essa situação a um tesouro valioso guardado em vaso de barro. É o conteúdo que dá ao vaso a importância que ele tem, não o contrário.
Somos constantemente levados a acreditar que nosso valor está relacionado com o que possuímos ou com o conhecimento que detemos. Temos essa tendência inata de valorizar mais o ter do que o ser. Somos morada da divindade, sim, apesar de nossas limitações presentes, mas temos consciência de que o nosso valor se deve ao habitante e não à casa em si mesma. Entender isso nos ajuda a desenvolver um relacionamento mais profundo com Deus e nos leva a um novo degrau no caminho da felicidade.